Quando eu era uma menina eu queria ser menino; olhava o arco-íris
e me deitava a investigar onde seria mais fácil cruzar as sete fitas coloridas,
que escondiam o princípio e o fim naquela linha levemente ondulada do horizonte.
Eu brotei do ventre de uma geografia suave ao olhar, mas
sensivelmente áspera pelas invernias que
sapecavam a minha pele. Porém o pealo mais forte veio do privilegio que tinham
naquelas paragens os humanos que nasciam com um pênis, e sendo eu de uma espécie com vagina, desde muito
cedo encarei a frieza de determinadas restrições,
como o fato de não poder brincar com outros meninos, além dos meus dois irmãos.
Sendo eu uma das raras viventes-menina-criança naquele universo, este veto dificultava
em muito a minha vida-brincante; as
peleias eram tensas.
Passei embaixo do arco-íris e me tornei menino nas ações,
obtendo o reconhecimento daquele mundo hostil em muitos quesitos, isto me
ajudou imensamente, e ainda ajuda.
Penso que daí brotou também a minha rebeldia, e aquela
milonga reflexiva e lenta, daquela linha monótona, que deu início ás minhas falas e ações, tomou outro
ritmo quando me tornei um ser urbano e
me deparei com estas mesmas dificuldades, passividades e rebeldias em ritmo
mais acelerado.