domingo, 29 de março de 2015

SER HUMANO COM VAGINA É GENTE



Quando eu era uma menina eu queria ser menino; olhava o arco-íris e me deitava a investigar onde seria mais fácil cruzar as sete fitas coloridas, que escondiam o princípio e o fim naquela linha levemente ondulada do horizonte.
Eu brotei do ventre de uma geografia suave ao olhar, mas sensivelmente  áspera pelas invernias que sapecavam a minha pele. Porém o pealo mais forte veio do privilegio que tinham naquelas paragens os humanos que nasciam com um pênis,  e sendo eu de uma espécie com vagina, desde muito cedo encarei  a frieza de determinadas restrições, como o fato de não poder brincar com outros meninos, além dos meus dois irmãos. Sendo eu uma das raras viventes-menina-criança naquele universo, este veto dificultava em muito a minha vida-brincante;  as peleias eram tensas.
Passei embaixo do arco-íris e me tornei menino nas ações, obtendo o reconhecimento daquele mundo hostil em muitos quesitos, isto me ajudou imensamente, e ainda ajuda.
Penso que daí brotou também a minha rebeldia, e aquela milonga reflexiva e lenta, daquela linha monótona,  que deu início ás minhas falas e ações, tomou outro ritmo quando me tornei um ser urbano  e me deparei com estas mesmas dificuldades, passividades e rebeldias em ritmo mais acelerado.