domingo, 28 de março de 2010

O CINEMA ENQUANTO FONTE HISTÓRICA E UMA ANÁLISE DO ESTRANHO MUNDO DE JACK

Aline Rafaela Portílio Lemes


Resumo: Neste artigo avaliamos a importância da utilização do Cinema como fonte histórica. Para tanto, dividimos o texto em duas partes: na primeira, apresentamos uma breve discussão bibliográfica acerca do estudo da questão. Depois, partimos para a análise do filme O Estranho mundo de Jack. Concluímos destacando a importância deste tipo de abordagem.


Palavras-chave: Cinema; História; O Estranho Mundo de Jack


Introdução
Para além de um meio de entretenimento, o Cinema pode ser visto como revelador de imaginários da sociedade que o produziu e o recebeu. Pode contribuir também para suscitar o senso crítico dos espectadores. Procurar-se-á discutir as relações entre Cinema e História e a importância do Cinema como fonte histórica. O texto é dividido em duas partes: a primeira em que se realiza uma discussão bibliográfica sobre o estudo desta questão; a segunda se constitui em uma análise do filme O Estranho Mundo de Jack (1993), de Tim Burton. As considerações finais destacam a importância dessa abordagem.

Discussão Bibliográfica
“Documento” é determinada herança do passado, fruto da memória coletiva, que o historiador escolheu para realizar seu estudo. Nesse sentido, todo fruto da ação humana pode ser considerado um documento. O cinema é documento. E essa escolha se torna profícua por diversas razões. O cinema além de ser considerado material pedagógico, é uma fonte histórica. Mais do que uma expressão artística, o cinema é um produto de uma sociedade, possui linguagem, indústria e público próprios. São inúmeras as possibilidades do uso do cinema enquanto documento histórico, podendo-se analisar desde o filme em si até todo o contexto e material que envolve sua produção e exibição. Procuraremos discutir as possibilidades e metodologias de análise do cinema enquanto fonte histórica, utilizando alguns autores que entendem da importância do cinema enquanto documento.
O cinema, assim como a história, se faz através de discursos, que pretendem oferecer uma compreensão do real (ABDALA JUNIOR, p. 1). Sendo formulado por alguém inserido em determinada sociedade, esses discursos dialogam com outros discursos que circulam na cultura (ABDALA JUNIOR, p. 1). Portanto, através de uma obra fílmica pode-se observar a sociedade que a produziu e, conseqüentemente, como nos lembra Barros, a sociedade que a consome (2006, p. 4). O autor observa que todas as obras cinematográficas trazem por trás de si ideologias, imaginários, relações de poder, padrões de cultura (idem).
É preciso entender, portanto, que esse discurso – que implica um enunciado e um leitor-espectador (ABDALA JUNIOR, p. 5) – formulado pelo cinema se insere dentro de um contexto. Uma das possibilidades, então, é analisar não o discurso em si, mas o que ele representa dentro do contexto sociocultural e histórico em que foi produzido. Todo discurso é possuidor de uma “voz”, que expressa o horizonte conceitual (sócio-ideológico) do autor (ABDALA JUNIOR, p. 7). É possível se compreender o que um discurso fílmico pretendeu observando os outros discursos da sociedade em que está inserido.
Um dos primeiros passos para entender o cinema é perceber que a linguagem cinematográfica comporta diversas formas de discursos. Barros atenta para a necessidade de se ultrapassar uma leitura superficial do filme, usando para tal uma metodologia de análise multidisciplinar e pluridiscursiva (2006, p. 10, 11). Existem em um filme diversos modos de expressão, independentes da escrita literária. Uma dessas dimensões fundamentais é a imagética, que também assinala Abdala Junior. Segundo ele, em uma comparação dos cenários cinematográficos com os cenários históricos, aqueles
‘materializam’ nas telas [...] muitas das condições que os textos históricos descrevem [...]. As imagens apresentadas nos filmes entram na construção de seu discurso e [...] [os cenários cinematográficos] pretendem dialogar com outros discursos presentes no contexto da época de sua produção (p. 3).
Ana Lívia Braga observa, também, ao analisar o filme Blade Runner, o importante papel que a arquitetura desempenhou ali, as dimensões antropológicas da cidade (BRAGA, p. 3). A autora cita que é possível construir uma interface entre as concepções e as questões antropológicas, arquitetônicas, políticas e sociológicas abordadas no filme (idem). Aponta, ainda, a importância da palavra e da imagem para demonstrar uma entropia acentuada da cidade (BRAGA, p. 5) que fazem a ambiência do filme. É possível analisar, também, a importância do repertório simbólico na construção do filme. Observa-se aí uma gama de interpretações que fugiriam a uma análise superficial.
Ainda na questão de imagens e cenários, podemos observar a importância da cidade de Javé na análise de Heloisa Helena Pacheco Cardoso sobre o filme “Narradores de Javé”. A cidade é um “lugar” – como bem define Ana Lívia Braga (p. 8,9) –, um espaço identitário para os indivíduos que ali habitam; são estabelecidas relações importantes entre os sujeitos e a cidade. Daí a importância de salvar a cidade, reconstruir sua história. A autora coloca a importância de Javé nos sentimentos de pertencimento que são manifestados nas falas do seus diversos habitantes (p. 4).
Esses exemplos demonstram a necessidade e possibilidade de uma análise específica de cada um dos aspectos do filme, sempre procurando estabelecer a relação entre eles, mas os entendendo em sua especificidade.
Além disso, uma obra é sempre polifônica (ABDALA JUNIOR, p. 8). Isso significa que ela permite inúmeras leituras. Isso vale tanto para o filme em si, como para o acontecimento que o filme (e até mesmo a história) usa como seu objeto. São inúmeras as “tramas” possíveis, ou seja, o foco que o discurso dá para seu objeto. Heloísa Helena Pacheco Cardoso também trabalha isso ao analisar o filme “Narradores de Javé”. A autora lembra a variedade de memórias que emergem das falas dos personagens, cada um querendo contar sua história sobre a formação do povoado.
Saindo do filme em si, Barros aponta outras fontes relacionadas a ele que também podem ajudar na sua compreensão. Além da fonte por excelência (o filme), existem aquelas geradas para e pela produção (BARROS, 2006 p. 5). Em outra passagem aponta: é preciso considerar ainda que a fonte fílmica gera outros tipos de fontes como substratos, etapas e instrumentos de trabalho (2006, p. 8). Entre alguns exemplos, pode-se citar o roteiro, a sinopse, as propagandas, além da documentação que se gera sobre ele, como a crítica.
Outra maneira de análise que Barros considera é a de filmes em série. Isso significa não partir de análises de filmes individualizadas, mas estudar a evolução de interesses temáticos a partir de um levantamento geral de obras fílmicas em um determinado período (2006, p. 8).
O filme é a projeção de uma imagem de determinado acontecimento. É a construção de um significado. É uma memória que determinado grupo constrói, não falsa, não mítica, mas uma fonte rica para perceber a relação entre os fatos apresentados e o seu significado para a sociedade que a produziu e a consumiu, ou consome. A obra cinematográfica revela indícios dessa sociedade, permitindo conhecê-la. Além disso, possui inúmeras vantagens em relação aos outros produtos. É uma forma de expressão, possui uma linguagem rica de diversos discursos que possibilita leituras, abordagens diversificadas. O discurso fílmico funciona, também, como ‘agente histórico’, e pode ser usado como material pedagógico. Através de uma “análise intensiva” de cada um dos seus aspectos, entendendo cada um na sua especificidade e estabelecendo um diálogo entre esses discursos, podemos realizar diversas e ricas leituras dessa fonte histórica.

O Estranho Mundo de Jack
O Estranho Mundo de Jack – The Nightmare Before Christmas, para quem prefere o título original – é uma animação dos estúdios Walt Disney lançada em 1993. O filme representou uma inovação no Cinema: é, pela primeira vez, utilizada a técnica de stop-motion em uma grande produção. Ele conta a história de Jack Esqueleto, o Rei do Horror da Cidade do Halloween, que descobre o Natal e decide celebrá-lo de sua maneira um tanto peculiar. Nessa empreitada, Jack e os outros habitantes da Cidade do Halloween acabam se confundindo e causando uma grande confusão.
Nessa segunda parte do artigo discutiremos alguns aspectos relativos à produção, determinantes na construção do filme. Em seguida, nos concentraremos na enredo, tentando realizar uma reflexão sobre as discussões suscitadas pelo filme.

A Produção
Apesar de lançado apenas no início da década de 90, Tim Burton, produtor e idealizador do filme, já o planejava há muito tempo. O Estranho Mundo de Jack é um filme que eu queria fazer há mais de uma década, desde que eu trabalhei como animador nos Estúdios Walt Disney no começo dos anos 80 (THOMPSON, s/d, p. 8, tradução nossa) . Desde o princípio, Tim Burton queria produzir o filme em stop-motion, uma técnica que nunca gozou de muita popularidade. Apesar de saber dessa dificuldade e desafio, sempre esteve convencido que este seria o melhor meio para contar sua história.
Ainda que determinado, Tim Burton decidiu deixar a idéia de lado por um tempo, após a rejeição do projeto pelos Estúdios Walt Disney. Enquanto isso lançou grandes sucessos como diretor – Batman (1989) e Edward Mãos-de-Tesoura (1990) servem bem para exemplificar. Quando retomou o projeto, Disney era o único estúdio produzindo animações bem sucedidas, e havia mudado sua administração. Sob Micheal Eisner e Jeffrey Katzenberg, o estúdio assumiu um novo compromisso com a animação, lançando grandes produções como A Bela e a Fera (1991) e Aladdin (1992). Só agora, o estúdio estava em condições de lidar com o projeto de Burton.
Estranho Mundo de Jack era o projeto mais apaixonado de Burton, ao qual ele possuía tanta dedicação. Mesmo assim, decidiu não dirigi-lo. Sabia que o filme só seria propriamente conduzido por um mestre de stop-motion. Esse mestre era Henry Selick.
Além da experiência fundamental de Selick, para dar vida à história foram indispensáveis as músicas de Danny Elfman. Elas contam a história, são fundamentais para o filme e sua compreensão. Tanto, que a própria elaboração do roteiro, em diversos momentos, só se tornou possível graças às composições de Elfman. A roteirista Caroline Thompson comenta: Quando eu vim [...] por volta de 80% das canções de Danny Elfman estavam escritas. Meu objetivo era escrever uma história que ligasse todas essas músicas. Completar personagens que não estivessem completos (THOMPSON, s/d, p. 90, tradução nossa) .
Normalmente, em um musical, as canções são elaboradas a partir de um roteiro proto. Em Estranho Mundo de Jack o processo foi inteiramente diferente. A composição das músicas se deu de uma maneira peculiar. A partir de um esboço da história foram compostas as músicas que acabaram por dar sentido ao filme. Elfman comenta que esta maneira utilizada na composição musical é a dos musicais dos anos 40. Hoje você tem um roteiro pronto e então pensa em maneiras de conectar as músicas nele. Mas Tim e eu começamos com o esqueleto de uma história [...] e desenvolvemos um tom através das músicas (THOMPSON, s/d, p. 86, tradução nossa) .
Além de ajudarem na elaboração do roteiro e na compreensão da história, as músicas do filme nos transportam para o interior dos personagens. Através delas eles expressam seus sentimentos, suas angústias, seus sonhos. Um exemplo é a música O que é isso?, que expressa a alegria e surpresa de Jack ao encontrar a Cidade do Natal, esse mundo que o maravilha. Além disso, as músicas ajudam a compor a personalidade dos personagens, o que é possível observar no Lamento de Jack e na música do Monstro Verde. Em Estranho Mundo de Jack os personagens se comunicam e se definem através das músicas.
Outra construção fundamental é a visual. Um dos aspectos comuns a todos os filmes de Tim Burton é a concepção do cenário e dos figurinos, no caso do Estranho Mundo de Jack, das próprias personagens. São concepções muito influenciadas pelo Expressionismo alemão e pelo cinema de horror clássico. Podemos observar alguns aspectos característicos no filme, como a concepção das cidades do Halloween e do Natal. Por outro lado, esse mesmo aspecto visual serve para separar realidades: enquanto o mundo das celebrações possui cenários magníficos e exagerados e figuras fantásticas, o mundo “real” é composto da maneira mais linear, harmônica, equilibrada possível, sem nada de extraordinário.

O Filme
Jack Esqueleto é o Rei do Horror. Ele habita a cidade do Halloween juntamente com diversos outros seres fantásticos, responsáveis por essa festa. São criaturas que planejam o ano todo sua festividade, assim como as outras festas são organizadas em suas respectivas cidades típicas. Um ano, no entanto, Jack se descobre cansado das mesmas coisas de sempre. Anseia por algo mais. Apesar de ser o Rei do Horror, de ter uma vida aparentemente completa e feliz, Jack sente um vazio dentro de si: Mas ano após ano é tudo igual e já não agüento esse festival. E eu, Jack, o REI DO HORROR! Quero algo mais, algo superior. Jack é um rei com fama e poder que só queria não mais sofrer.
O protagonista aparenta tranqüilidade, felicidade, poder, sucesso. No fundo, porém, é um personagem gentil e melancólico. Caroline Thompson explica que a melancolia do personagem vem de sua solidão e isolamento. Ele é uma dessas pessoas que por fora aparenta estar bem, mas na verdade é infeliz (THOMPSON, s/d, p. 28, tradução nossa) .
Jack encontra um fim, ou um aparente fim, para essa sua tristeza quando descobre a Cidade do Natal. Após se lamentar sobre mais um ano de Halloween, Jack vagueia pela floresta com seu cãozinho Zero. É quando encontra algumas árvores, portais do Mundo das Celebrações. Há a árvore do dia de São Patrício, Ação de Graças, Páscoa, Dia dos Namorados, Halloween e Natal (típicos feriados estadunidenses).
A porta em formato de árvore natalina é a que mais seduz Jack. Ele acaba caindo, acidentalmente, na Cidade do Natal. Encanta-se com tudo o que vê, tão diferente para seus olhos, ouvidos e demais sentidos. É o oposto do que conhece. Surpreende-se com pessoas se beijando, crianças dormindo tranqüilas, sem monstros para assustá-las, com os doces flocos de neve e o bom cheiro das tortas. Nunca, em sua vida de Halloween, aquilo era concebível. Mas o que mais lhe encanta é aquele grande personagem, vestido de vermelho.
Quando volta a Cidade do Halloween, para a alegria dos seus habitantes, Jack precisa contar urgentemente sua incrível descoberta. Assim como o próprio protagonista, as criaturas dessa cidade não entendem direito o espírito do Natal. Ainda assim, acabam se encantando e adorando essa realidade diferente, ainda mais quando Jack lhes conta sobre o “Rei” do Natal. O homem mau, grande, que sai pela noite espalhando o terror e não perdoa ninguém. O Papai Cruel.
Esse personagem é representativo para a confusão realizada pela população da Cidade do Halloween. Nada mais natural para eles, para seu mundo de terror, que um papai Cruel, ao invés de Noel. Assim como nada mais natural que um tirano malvado, ao invés de um velho bonzinho que espalha alegria.
É clara como é representada no filme a influência que o contexto tem nas personagens; que o meio tem nas pessoas. Como algo só é concebido a partir de seu lugar de formação. Os habitantes da Cidade do Halloween conhecem apenas ‘sustos’, ‘terror’, ‘medo’, esse é o sentido de suas vidas. Por isso essa confusão. Não entendem a ‘alegria’, o espírito do Natal. Por isso concebem o Natal com um espírito de Halloween, que lhes é familiar.
O Halloween não é concebido como algo mau, muito menos os habitantes da Cidade do Halloween. O “medo”, o “terror” é algo, ali, positivo. O “mau” é “bom”. O “feio” é “belo”. Não conhecem outra coisa senão isso. Jack acaba estragando o Natal, assustando as pessoas, que o encaram como mau, impostor. Na verdade, o Rei do Horror só esta tentando fazer algo bom. Ele pensa que tudo está maravilhoso, funcionando, quando, na verdade, está levando o mundo todo a um estado de pânico.
A passagem acima citada, quando Jack descobre e interpreta à sua maneira o espírito natalino, representa como o seu mundo o influenciou nessa concepção; e como isso gerou confusões e mal-entendidos.
Sem dúvidas o filme representa uma novidade na maneira de fazer Cinema. Mas também sua história deve ser considerada como fundamental. Além de nos revelar as festividades típicas de uma sociedade, o Estranho Mundo de Jack realiza uma reflexão sobre os valores e sobre como encaramos o diferente. Nos mostra como a concepção de mundo pode por vezes limitar nossas ações e pensamentos, e como o que às vezes nos parece “mau”, é “bom”; o que nos parece “certo”, é “errado”.

Considerações Finais
A discussão do artigo se deu no sentido de comprovar a importância do cinema enquanto fonte histórica. A partir das análises de alguns autores, podemos comprovar a importância e o espaço do cinema dentro da história. À luz dessas discussões, procuramos analisar e refletir sobre um filme específico, O Estranho Mundo de Jack, demonstrando como uma fantasia é capaz também de questionar, e não apenas entreter. O filme além de nos revelar uma sociedade, é capaz de realizar uma análise profunda, despertando o senso crítico do espectador. É esse o lugar do Cinema na História. É essa sua importância enquanto documento.


Referências
ABDALA JUNIOR, Roberto. O cinema: outra forma de “ver” a história. Revista Iberoamericana de Educación. p. 1-11. Disponível em:
http://www.rieoei.org/deloslectores/1244abdala.pdf. Acesso em 20/07/2009.
BARROS, José D’Assunção. Cinema: forma de expressão artística e fonte histórica. Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Severino Sombra, p. 1-16. Disponível em:
http://www.uss.br/web/arquivos/textos_historia/Jose_Simposio_USS_nov_2006_Assuncao.pdf. Acesso em 20/07/2009
BRAGA, Ana Lívia. O Cinema enquanto fonte de compreensão da realidade: Blade Runner e seu repertório simbólico. Revista Eletrônica O Olho da História, p. 1-19. Disponível em: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/cinemarealidade.pdf Acesso em 20/07/2009.
CARDOSO, Heloisa Helena Pacheco. Narradores de Javé: histórias, imagens, percepções. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Abril/ Maio/ Junho de 2008 Vol. 5 Ano V nº 2, p.1-11. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br. Acesso em 20/07/2009.
THOMPSON, Frank. Tim Burton’s nightmare before Christmas: the film, the art, the vision. New York: Disney Editions.